1 de janeiro de 2009

O dom da sincera importância de mim

Estava quase. Antes de ter estado, foi preciso jantar, estar na conversa, rir, estar bem de maneira simples, esperar duas horas, mais ou menos hora e meia, quarenta e sete minutos, meia hora, dez minutos, três minutos, menos de um minuto, fazer a contagem decrescente dos últimos dez segundos, pegar em doze passas, e já estava! O novo ano já tinha começado, pronto a gastar-se até a um outro ano que já está a vir!
Ouviam-se sorrisos e felicitações mútuas, via-se o fogo-de-artifício e o tilintar de copos meios de champanhe uns nos outros, cheirava-se a lenha a arder na lareira, sentia um pequeno silêncio a crescer-me, a não me incomodar, somente a parecer fazer-me lembrar que me faltava algo a este momento.
Lembrei-me. O meu copo de champanhe já era um só copo e ainda tinha nove das doze passas na mão. Eram desejos que me faltavam fazer. Desejos que quero tanto para mim que os três que já fiz se dirigiram a uma só outra pessoa. Pensei em distribuir o que me restava desejar a outras pessoas de que também gosto, mas não me interessou. Não interessa. Não me tem valor estar a esforçar-me a desejar quando o faço só para dar uma tradição por cumprida. Interessa fazer desejos como fiz com os três primeiros. Desejos lembrados, como ideias que saem de mim em momentos que podem não me ser apropriados, mas integralmente convenientes à pureza deles mesmos. Actos inatos que nos surgem sem pensarmos muito, como meter nove passas à boca sem ser por causa de desejos tradicionais.
Não tinha nada que fazer em frente à lareira e nem mais nada a esperar sentado no sofá com a televisão ligada para todos que não lhe prestavam a mínima atenção. Segui. Levantei-me e fui procurar um sossego só meu e um pedaço de céu pintado por estrelas e marcado pelo luar.
Foi bom encontrar este lugar, acho que foi dele que percebi. Num segundo, o ano é outro e as pessoas vão mudar, mas não de um instante para o seguinte. Amanhã, as estrelas estarão quase todas a brilhar no mesmo lugar escuro onde estão e os desejos manter-se-ão guardados no sítio onde têm de estar, na alma de quem os fez, no coração a quem eles se dirigem, no papel onde foram escritos, na consciência onde se gravaram, num qualquer e bom espaço, num vazio que não deixa fugir sinceridade e simplicidade de discurso. Porque os desejos são isto, elementos sinceros e simples. Talvez sejam importantes, talvez sejam fundamentais, talvez possam ser ilusões sem forma nem valor, talvez o seu único interesse não esteja no que são mas serem feitos. Deve ser isso. A importância de um desejo é querer tê-lo, querer fazê-lo, querer entregá-lo.
Como estas ideias me pareciam estar a desmazelar-se mais do que o normal desmazelamento da maior parte das minhas ideias, fui à cozinha beber água porque não tinha sede, para pensar mais levemente. Voltei. Fiquei a ver tudo a meu redor. Nada mudou. Está tudo igual. Desejar tem a mesma importância.
Fiquei a ver as estrelas. Estarreci-me, perfeitamente sereno, quase a dormir e a sonhar da mais bela forma, com os olhos virados para esta tela escura recheada de pontos. Enquanto um molho de nuvens estava para tapar o canto estrelado do céu que me ia dando algum encanto, cheguei a uma conclusão que me deveria ser absurdamente óbvia desde o dia em que me virei a olhar o que está acima de qualquer horizonte. Talvez já soubesse e, caso me tenha sido sempre entendido, hoje foi o dia em que percebi que entedia. Não precisava de as ver mais hoje, porque já sei. Cada estrela é única, diferente, inacessível ao toque e, por vezes, bem próxima do pensamento leve, é tão distante e tão radiante. Em cada uma pode estar um ponto que acalma e alegra ao jeito de cada uma delas. Cada uma tem a sua maneira de significar algo, de ser importante. Retirar todas ou apenas uma do lugar onde brilha nunca irá ser tentado, pois isso seria a perfeita tirania.
Seguindo esta conclusão incrivelmente inconclusiva e “criancesca”, nasce uma inquietação majestosamente estranha. Lembro-me do pano de estrelas que vi há bocado. Recordo a certa tradição dos primeiros segundos do primeiro dia do ano para o acto de desejar. Passa-me a abstracta forma de pessoas sem rosto pelo pensamento. Penso em pessoas. Surge-me lembrar de homens um pouco menos humanos. Intriga-me a passagem de ano dos tiranos.
De repente, intrigava-me a forma como um tirano viveria esta ocasião. Um tirano talvez fizesse uso da tradicional dúzia de passas e da taça de champanhe para celebrar, ou celebra com armas e estratégias à mesa, bebendo vontade de opressão, saboreando dúzias de centenas de regras rígidas que o fazem morrer se não as conseguir impor. Talvez a sua tirania o tenha desacostumado a desejar, ou deseja sem ele próprio perceber. A desejar, ele certamente se reporta, em quase todas as ocasiões, a possuir objectos, a sobrepor-se a um mundo, a enraizar imortalmente a sua ideologia, a ser imortal, a matar quem não quer ver vivas as suas ideias. No resto que completa todas essas ocasiões, ele nem sabe mas deseja que cada uma das estrelas não se perca do seu sítio, porque, ignorantemente, lhes percebe alguma importância. Há então momentos, só momentos, propositadamente “inocasionais”, em que o tirano não deixa de ser tirano e deseja que alguém não sofra da tirania de estar mal.
O tirano mais desinteressado por outras vidas deseja que as suas tropas vençam, que cada um dos seus militares esteja vivo para a batalha do dia seguinte. Quando não deseja, vem-lhe o desejo de que cada um dos seus homens sofra o mínimo, que a guerra acabe para que quem lutou pela sua tirania tenha direito a uma paz. O tirano solitário quer a sua feliz solidão, e essa solidão terá mais felicidade se alguém que o tirano ama não se quer juntar a ele para ser feliz. O tirano sem sentimento não tem forma de desejar ser feliz, mas encontra uma pequena crença de que quem se chora a vê-lo queira sorrir. O tirano menos interessado em desejar, sem ocasião de tal, deseja o que menos lhe importa e que lhe é realmente importante.
Qualquer tirano, que não se vê com estes momentâneos e estrelados desejos, não deseja ter uma pessoa ou querer uma pessoa. Todos os tiranos desejam que uma pessoa tenha, que uma pessoa queira, que uma pessoa queira ter, que uma pessoa seja. Estes são os desejos mais imateriais e “despontuais” num tirano. São os menos pensados, os mais fundos, (talvez) os mais profundos, os menos esgotados. São desejos absorvidos em qualquer tirano, mesmo que este se venha a absolver-se da sua tirania, porque não pertencem somente aos tiranos. São desejos de alguém, porque as estrelas têm importância. São os desejos de qualquer alguém para alguém importante a cada um, pois cada estrela é como cada pessoa, e umas brilham-nos mais do que outras.

Nunca pensei que um episódio de tanta inquietação de pensamento me levasse a esta maluca e sorridente conclusão. Tudo isto ainda me parece a criancice de há bocado, mas agora percebo. Fico feliz por saber que as pessoas possuem o dom das estrelas, o dom da importância, que por ser tão encantado e fascinante, não se pode deixar perder-se. Acredito que, sem ele, ultrapassaria qualquer utopia de tirania, e só me acho tirano em querer ver as estrelas brilharem-me mais forte, as pessoas serem mais importantes para mim. Por ser meio infantil, pode não ter relevância, pode ser somente mais um assunto, mas é isto que não quero só entender. É o que, possivelmente, sempre fiz por me interiorizar.
Desejos sem formulação, sem tempo de saída ou chegada, saem do fundo de um ser para o fundo de tudo, sem forma e sem propósito interesseiro, de forma a fazer aquelas pessoas brilharem. O seu brilho, próprio de cada uma, é próprio em cada momento. Para cada instante desconhecido há sempre cada apelo suave e atenciosamente prazenteiro para manter cada fosforescência acesa, fugaz, ilimitadamente acolhedora, alegrante, entusiasmante, nunca digna de ser lembrada porque o indigno seria alguma vez esquecê-la.

Entre lembrar e esquecer, fui egocêntrico o suficiente para não me esquecer de mim, para me inquirir como estará o meu brilho. Sei que o meu brilho é algo meio vivaz, porque também sou alguém que importo a alguns outros para brilharem como brilham, para quererem ser quem são, para serem quem nunca deixarão de ser e de me querer que os veja brilhar. Mas não interessa falar muito de mim quando sou eu a fazê-lo, porque posso saber muito o que há a dizer sobre esse assunto e não o fazer, por interesses que me são próprios e impartilháveis.
Quero lembrar a quem desejo. Quero lembrar a quem ainda quero desejar hoje. Quero lembrar a quem desejei esta noite, pois que, se o fiz, foi por ter a intrínseca vontade de a ver brilhar.
Quero saber porque desejo a essas pessoas. Quero saber os motivos que me motivam a ajudar a fazê-las brilhar. Não preciso saber porque já me levei a querer fascinar-me mais com o brilho dessa pessoa que não lembrei, que apenas se fez questão de me aparecer na minha incógnita forma de querer bem.
Já sei. Essa pessoa despertou o dom da importância de mim.
Agora, falta conhecer qual a importância de uma pessoa. Resta conseguir explicar-me o que essa pessoa me faz, o que ela, sem saber, me leva a fazer.
São tantas as pessoas que existem no mundo. Existem as que não conheço. Existem as que conheço de breve passagem ou por ter ouvido o seu nome algures. Existem as que se pensa conhecer e que aparecem ocasionalmente nas idas ao cinema ou nos serões em frente à televisão. Existem os familiares e os parentes afastados. Existem todos os rostos do meu mundo em que quero a inocência de um sorriso próprio a cada um.
Existem momentos. Não sei se são poucos ou demasiados. Vou considerá-los ideais, que não me param o tempo, que ignoro como me ocorrem, que mudam algo sem dar a entender que o fazem. São apenas momentos, nos quais quase não se percebe que se está a pensar nessa pessoa importante. São aquelas alturas em que se anda de um lado para outro, percorrendo os cantos da casa, para se concluir que não se quer ir buscar água á cozinha ou ver se a queda do tecto da sala é para breve. Tão-somente e simplesmente não se consegue mandar as pernas pararem enquanto no nosso pensamento se impõe imaginar o que essa pessoa está a fazer ou se essa pessoa está daquele jeito que se gosta, feliz e fazendo o que a faz feliz. São tempos em que a consciência implica que há tarefas a cumprir e que à preguiça mais teimosa não se pode pôr a culpa por não estarem realizadas, em que simplesmente outra consciência mais que subconscientemente criada surge e superioriza-se, fazendo não ver os pedantes que passam ou os gritos que saem das ruas, cultivando ocasiões de divagação acerca do que se pode fazer para essa pessoa. São dias que, como em todos os dias, o sol nasce e um ímpeto de satisfação percorre o corpo por se saber que esse sol também está a nascer para essa pessoa. São horas de chuva passadas à janela, querendo que cada gota afogue cada seu suspiro de auto-desilusão, cada seu grito de mágoa interiormente, cada seu ápice de desassossego. São dias em que neva e se quer que se deixe mais neve cair, porque ela apazigua, deixa mais espaço para nos crescer uma criança, que sabe melhor do que qualquer poeta adulto, juntar palavras simples para os desejos eternos que se desejam fixos nessa pessoa. São noites de luar ou de lua escondida no meio de ciumentas nuvens, em que as estrelas sempre desvendam a sua magia. São essas noites, como esta que hoje vivi, em que nos viramos para as estrelas e elas se põem nos nossos olhos, fazendo-nos ter toda a força de esperança de que alguém, essa pessoa, brilhe tanto como a mais brilhante estrela, guardada para ela para que ela possa saber que importa.

Não são muitos mais os momentos em que uma pessoa importante realmente importa. É toda uma vida que se passa sem pequena ausência dessa pessoa no pensamento.

Mas chega de pensamentos lamechas. Acabei de me lembrar que ainda não concretizei nenhum acto neste novo ano, e estava a pensar que o meu primeiro acto deste 2009 seria encontrar o meu gato, para praticar com ele uma das habituais traquinices.

Um feliz e brilhante 2009 a todos os que acham que o merecem ter…